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Opinião
Antonio Carlos Prado
Os artigos editoriais são de responsabilidade de cada editor e não refletem necessariamente o posicionamento editorial da Afrobrasnews.

Por:  Antonio Carlos Prado, Diretor de edição de ISTOÉ.

 

Finalmente, graças ao STF, está morta no Brasil a tese da legítima defesa da honra, um princípio extraterrestre a justificar todos os assassinatos de mulheres cometidos por homens que ainda carregam na brutalidade e na arrogância a narcísica herança de uma sociedade patriarcal. “Você é minha ou não será de mais ninguém” é a frase padrão e de ordem do fúnebre sentimento de posse, espécie de senha da fatalidade que o assassino passa a si mesmo – e sente-se, então, liberado para praticar o crime, como se tal ato perverso, amoral e aético fosse apenas uma determinada equação lógica e racional.

Profundas “feridas narcísicas”, se enfocarmos pela psicanálise, ou graves “transtornos da personalidade narcisista”, sob o prisma da psiquiatria, engendram um mecanismo emocional que leva o seu portador a coisificar, por exemplo, a namorada, a esposa ou mesmo aquela parceira com a qual ele fez sexo casual. Se essa mulher decide se relacionar com outro homem, se passa mesmo a amar outra pessoa, a doentia psique ou transtornada personalidade do narcísico “lê a realidade” da seguinte forma: “a mulher que estava por mim ‘congelada’ começou a ter vontade própria”. Em outras palavras, o espelho narcísico (o homem só consegue valorizar a si próprio a partir do olhar valorizador da companheira) escapa-lhe das mãos. É preciso espatifar esse espelho, antes encantador, agora deformante.

Tal espelho (a minha capacidade de me libertar dela) tem de retornar inteiro a refletir meu ego. Fechado esse circuito, o feminicídio está consumado.

Cometido o assassinato, no campo jurídico entrava em cena, para defender o criminoso, a invencionice da legítima defesa da honra — como se ela, que é algo essencialmente pessoal e intransferível, pudesse ser maculada de fora para dentro. A mulher é dona de seu corpo, não pode a honra masculina (e machista) tutelá-la. E fala-se em invencionice porque, na verdade, a legítima defesa da honra jamais constou de qualquer código penal republicano. Ela vigorou codificada enquanto o Brasil viveu sob as Ordenações Filipinas, e isso durou de 1603 até 1830 — foi a mais longeva legislação a regrar o País.

Mesmo após a sua queda, no entanto, a tese de legítima defesa da honra seguiu a ser um instrumento de absolvição nos tribunais do júri, apesar de nos vermos diante de uma realidade estarrecedora: em 2022, uma mulher foi assassinada a cada seis horas no Brasil. Com a atual decisão do STF fica vedado falar em legítima defesa da honra na fase de inquérito, na fase processual e também de julgamento, uma vez que ela fere os princípios constitucionais da proteção à vida e dignidade da pessoa humana. A exótica tese extraterrestre finalmente partiu.

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