Por José Vicente*
No País em que a vergonha da escravidão se arrastou por quase quatrocentos anos tendo dilapidado a vida de milhões de homens e mulheres negros, e que, depois, manteve todos eles acorrentados pelo racismo e a discriminação contra toda sua descendência é mais do que imperativo todos os esforços no sentido da reflexão sobre as feridas morais que marcaram os que nos antecederam e que desafiam a nossa geração, sejam realizadas com severidade, profundidade e com movimentos simbólicos de grande repercussão.
A luta dos brasileiros pela liberdade, igualdade e respeito a dignidade da pessoa humana começou com a rebeldia do primeiro negro escravizado que pisou no solo do Brasil. Foi com eles e nos quilombos que negros, brancos, índios, homens, mulheres e jovens construíram um País alternativo aquele do absolutismo, da opressão, da escravidão e da violência. Os quase seis mil quilombos ainda existentes são a prova dessa vanguarda, e a denúncia e luta diuturna contra o racismo e o extermínio da juventude negra, a expressão da emergência e permanência desse estado de compromisso imemorial.
Foi o sentido dessa luta que manteve o negro vivo e liberto até os dias atuais. É o espírito dessa coragem e dessa sede de justiça e igualdade que herdados dos seus ancestrais. Esses sentimentos fortalecem, expandem essa luta na defesa inconcessível dos propósitos civilizatórios da humanidade. Foi essa luta e esse sentido que resgatou Zumbi dos Palmares da marginalidade histórica e apagamento social para transformá-lo no herói nacional de todos os brasileiros. Foi o ímpeto e a potência dessa chama que reivindicou e definiu o dia de sua morte como o dia da Consciência Negra e tornou feriado essa data em mais de duas mil capitais e quatros estados. É essa a luta a mais inovadora e a mais transformativa ação política que tem reconfigurado a fisionomia do Brasil promovendo avanços e conquistas sociais, políticas e civilizatórias de relevada grandeza.
Com 40% de negros (cerca de 44 milhões de pessoas), o estado de São Paulo é o maior ajuntamento desse grupo étnico na América do Sul e, o Brasil, a maior Nação negra fora da África. Foi a força, o trabalho e a energia dos negros nos cafezais; a grandeza ética de Luís Gama; o pensamento de Machado de Assis e Mário de Andrade; a honradez de Teodoro Sampaio, dos Irmãos Rebouças e a participação da Legião Negra de mais de dois mil soldados negros na Revolução Constitucionalista de 1932 que, a final constituiu, a estrutura da possante locomotiva do País.
*Professor, advogado e militante do movimento negro, ele é o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, instituição pioneira de ensino no Brasil que ajudou a fundar em 2004.