Por José Vicente*
Ninguém nasce odiando. Se as pessoas foram ensinadas a odiar elas podem ser ensinadas a amar. Esse princípio lapidar de Nelson Mandela ilustra, ilumina e traduz o espírito do dia internacional de luta contra a discriminação racial que a comunidade de nações celebra nesse dia 21 de março.
Esse robusto ensinamento continua atual e necessariamente obrigatório em qualquer lugar do mundo e, principalmente, num país de profundas manifestações de discriminação, racismo explícito e profundas desigualdades raciais como é o Brasil.
O modo de operar na teoria e na prática essas ações no ambiente corporativo foram definitivamente esmiuçadas, debatidas e equalizadas por Graça Machel, ativista global pelos direitos humanos e viúva de Mandela, no encontro com 70 presidentes das 140 empresas pela equidade racial do nosso país, componentes da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e no Mover (Movimento Empresarial pela Equidade Racial), reunidos no Fórum Internacional pela Equidade Racial Empresarial, realizada em novembro de 2022, na sede da Universidade Zumbi dos Palmares, na cidade de São Paulo.
No documento final, denominado Carta de São Paulo, todos os seus participantes reconheceram a fragilidade das ações até aqui coligidas e acordaram as notas definitivas do diagnóstico e do compromisso ali formalizado: não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, propositivo, transformativo e profundamente honesto com os propósitos da igualdade de direitos e oportunidades sem distinção de cor ou raça; o combate ao racismo é obrigação e dever ético, moral e legal do ambiente corporativo; essa atitude precisa ser elevada e definida como prioridade corporativa realizando seu balizamento para dentro e norteando essa exigibilidade para fora.
Silêncio, imobilidade, ambiguidade e diversionismo significa ao final, compactuar, acumpliciar e fazer concessão para o racismo e para os racistas.
Portanto, o drama argentino serve de alerta às nações que arriscam entregar a populistas um Estado sem controles fiscais. O Brasil navega em aguas tormentosas e está sem âncora. A luz vermelha está acesa.
Por tudo isso, continua incompreensível, inexplicável e necessariamente injustificável, que o resultado dos velhos e novos programas, ações e medidas e movimentos de promoção e fortalecimento da democratização dos acessos, da igualização das oportunidades e valorização diversidade de gênero, de raça e de portadores de deficiência nas empresas tenham se traduzido em imobilidade e proporcionalmente em exclusão dos negros do ambiente corporativo.
Como sabido, conhecido e reiterado mais diversidade nas empresas não tem significado assertivamente mais negros entre os colaboradores nos espaços privilegiados; mais homossexuais e LGBT’s, negros, mais mulheres negras na gestão e direção. Não significou mais portadores de deficiência negros nos ambientes corporativos privado do nosso país.
As questões que envolveram o serviço de segurança privada que esteve sobre holofote nos anos anteriores com a pesada acusação de discriminação e racismo contra negros no acesso, trânsito e permanência nos supermercados, bancos e shopping centers e o mais recente caso das vinícolas gaúchas pilhadas numa das extensões do racismo, o trabalho análogo à condição de escravo, ilustram com perfeição a contradição da adesão aos princípios civilizatórios empresariais, de um lado, e uma prática marcada pela violência, hostilização e vilipêndio a esses mesmos fundamentos, de outro.
Tudo envolto e protegido por um pacto de silêncio e cumplicidade, onde as terceirizadas fazem o trabalho sujo e toda a cadeia realiza uma lavagem de reputação e desresponsabilização, enquanto misteriosa e incompreensivelmente recebem premiações locais e internacionais, são certificadas como melhores empresas para se trabalhar e chegam ao cúmulo de ofertarem e ter aceito suas ações no índice de sustentabilidade das bolsas de valores como expressão de responsabilidade e prática de sustentabilidade ambiental e social. Tudo como as- sentimento e sem constrangi- mento de qualquer daqueles que compram e vendem suas ações.
Se, o governo andou bem na produção de legislação e políticas afirmativas para combate ao racismo e promoção da inclusão e empoderamento dos negros como foram, por exemplo, as cotas para negros nas universidades e serviço público, e, se, as empresas públicas estão adiantadas no domínio do ciclo de seleção, plano de carreiras e promoções e mesmo no manuseio das comissões de hetero identificação para o impedimento das fraudes nas seleções, as empresas privadas no seu conjunto estão a anos luz de apresentarem e realizarem uma condução satisfatória nesse tema que ganhou emergência e prioridade num governo progressista e com profundo compromisso e realizações dentro dessa sensível agenda.
A lenta construção de uma jurisprudência que tem fortalecido a responsabilidade objetiva das empresas nas ações e prática dos fornecedores e terceirizados e a proliferação de ações de reparação de danos morais individuais e coletivos que tem resultado em termos de ajustamento de conduta milionários tem enviado sinais importantes sobre essa questão — no caso Carrefour no Rio Grande do Sul os valores chegaram a R$ 120 milhões e no caso das vinícolas sulistas, de largada está sendo exigido R$ 200 milhões. Soma-se a isso a mais nova normatização do Conselho Nacional de Justiça que define como exigência e obrigatoriedade para a contratação de empresas de segurança a qualificação lastreada em direitos humanos, promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo. Uma verdadeira cláusula contratual antirracista que rapidamente deve transbordar para outras dimensões e ambientes do contrato público e, posteriormente o contrato privado.
Tudo somado, o dia 22 de março, o day after do dia internacional de luta contra discriminação racial, pode, deve e precisa ser um novo paradigma para que empresas e sociedade deem um salto para o futuro e de profunda qualidade por sobre essa questão. O grupo de em- presas pela equidade racial, o maior contingente de empresas antirracista das Américas, está fazendo sua lição de casa e todas as demais são bem-vindas nesse esforço civilizatório. De novo parafraseando Mandela: ninguém nasce odiando!
*José Vicente é doutor em educação, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, apresentador do programa Negros em Foco, da TV Culturae líder do movimento Cotas Sim, Pós Doutor* FEA/USP – Fundador/Reitor Universidade Zumbi dos Palmares – Membro Conselho Editorial Folha de São Paulo – Conselho Ética CONAR – Comentarista Jornal TV Cultura – Articulista Revistas Isto É – Veja.